Delirantes, oportunistas e inconsequentes: anotações sobre o Brasil de hoje

Delirantes, oportunistas e inconsequentes: anotações sobre o Brasil de hoje


O autoengano e o desvario são temas antigos da literatura. O protagonista descreve eventos imaginários, esboça personagens e relata acontecimentos duvidosos. Seu discurso tem ordem e método, mas o leitor infere os traços latentes de loucura. O protagonista, contudo, apenas compreende o desastre anunciado quando já é tarde demais.

Em Shakespeare, há um pouco de tudo. A ambição desmedida de Macbeth resulta em atos abomináveis que levam à culpa e à autodestruição. Hamlet simula ter perdido a razão na tentativa de revelar quem assassinara seu pai – e o resultado das suas artimanhas foi devastação. Rei Lear abre mão da sua coroa e encontra uma realidade desoladora onde imaginava haver cumplicidade.

Por vezes, autores antigos se valiam de personagens “fio-terra” como contraponto ao desvario. Intuitivos, pouco dados a abstrações, esses coadjuvantes intuíam as artimanhas da mente. Sancho Pança, em Don Quixote, é um deles; outro é Polônio, em Hamlet, que desconfia dos desvarios do príncipe: “Ainda que seja loucura, existe método nela”.

Livre dos delírios, Don Quixote desiste da vida desesperançado, para desconsolo de Sancho: “a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem menos, sem ninguém o matar, nem outras mãos que o acabem a não ser as da melancolia”.

A literatura ilustra os riscos do descontrole que leva à autodestruição, mais próximo de nós do que gostaríamos de acreditar. Em alguns casos, os protocolos da ciência ajudam a identificar falhas nos argumentos. Em outros, os protocolos institucionais reduzem o risco de descontrole das decisões coletivas.

Já foi pior. Até a modernidade sobreviviam teses facilmente desmentidas pela experiência, como a de que “os corpos mais pesados caem mais rapidamente” ou a de que “a Terra é plana”.

No terceiro século antes de Cristo, Eratóstenes de Cirene observou que, no mesmo dia do ano, o Sol podia ser observado no fundo dos poços em uma cidade ao meio-dia, mas o mesmo não ocorria em outra que ficava mais ao norte. Ele inferiu que a Terra seria redonda. Com simples geometria, calculou a sua circunferência, errando o valor correto em cerca de 2%. No entanto, muitos ainda continuaram a acreditar que a Terra seria plana.

Os protocolos da ciência contribuem para rejeitar narrativas equivocadas. As teses sobre o mundo devem ser precisas e garantir mecanismos que permitam verificar se são desmentidas por meio dos testes empíricos disponíveis.

Isso ocorreu na medicina. Havia narrativas sobre as causas das doenças e as medidas a serem adotadas, mas não protocolos da ciência para testar hipóteses e verificar o sucesso dos tratamentos.

No século 19, em Viena, estudantes realizavam partos depois de trabalharem em cadáveres, sem lavar as mãos, e muitas parturientes morriam após o parto. Ignaz Semmelweis sugeriu, com base na evidência, que a higienização das mãos reduziria a mortalidade. Sua tese foi sumariamente descartada. Evidência era de pouca serventia naquela época em que a medicina preferia narrativas.

Paulatinamente, os protocolos da ciência se disseminaram na medicina. Os tratamentos precisam ser submetidos a testes aleatorizados com grupos de controle para verificar a sua eficácia. Algumas vacinas contra a covid sobreviveram a esses testes, ao contrário da cloroquina.

Nas últimas décadas, os protocolos da ciência passaram a ser adotados no desenho de outras políticas públicas, como a gestão da educação ou os programas de transferência de renda. Isso ocorreu em muitos países.

No Brasil, contudo, os governos ainda fazem suas intervenções em muitas áreas com base em narrativas e desejos, nem sempre republicanos.

O sucesso por aqui é medido pelo volume de recursos gastos ou de obras inauguradas, não pelos seus resultados. Políticas públicas são implementadas sem estimativa cuidadosa de impacto ou sem a análise da sua adoção em outros países. Pouco se estima o custo de oportunidade. Críticos dos defensores da cloroquina por vezes não percebem que defendem programas que padecem da mesma falta de evidência.

A falta de protocolos da ciência permite que políticas públicas pouco eficazes sobrevivam, frequentemente beneficiando grupos de interesse em prejuízo da maioria. Um exemplo é a alocação ineficiente dos recursos produtivos em razão da intervenção pública. (Há uma imensa pesquisa sobre o tema, como a sistematizada pelo artigo de Diego Restuccia e Richard Rogerson, The Causes and Costs of Misallocation, publicado no Journal of Economic Perspectives. O livro Para Não Esquecer, coordenado por Marcos Mendes, sistematiza o fracasso de diversas intervenções públicas no Brasil).

Os países ricos não usufruem apenas dos protocolos da ciência. Eles também se beneficiam de instituições que limitam o desvario dos governantes. O Executivo pode agir dentro das regras estabelecidas pelo Legislativo. Cabe ao Judiciário garantir o cumprimento das leis, mas não deliberar.

A autocontenção e a observância dos protocolos institucionais previnem que um poder se exceda na seara dos demais e reduzem o risco de que, por interesses indevidos, medidas sejam adotadas de afogadilho.

Os protocolos da ciência, contudo, não conseguem tratar de muitos temas. Por vezes, a evidência não é conclusiva. Em outros casos, ela indica dilemas que devem ser resolvidas por meio da deliberação democrática, contrapondo os custos e benefícios das diversas possíveis intervenções do setor público.

O desenvolvimento das instituições do Estado de Direito, com seus freios e contrapesos, procura equilibrar o processo de escolha coletiva. A gestão pública toma decisões que podem resultar em efeitos colaterais inesperados. Ela também deve avaliar os seus efeitos assimétricos nos diversos grupos sociais.

A governança cruzada do setor público nos países desenvolvido, balanceada entre diversos poderes autônomos com alçadas limitadas é bem mais complexa do que tem sido a sua prática no Brasil. Um exemplo é o respeito à autonomia das agências reguladoras. Salvo em casos excepcionais, naqueles países o Judiciário não interfere nas decisões das agências, que são responsáveis pela execução de boa parte da política pública.

Nos EUA, a Suprema Corte chegou a estabelecer, em 1984, que o Judiciário deveria seguir a interpretação das leis propostas pelas agências, desde que “razoáveis”, o que na prática lhes conferiu grande autonomia.

Atualmente, alguns defendem que em certas circunstâncias essa autonomia se tornou excessiva, e o Judiciário a tem limitado, como analisa T. W. Merrill no livro “The Chevron Doctrine”.  A sutileza dos argumentos utilizados nesse debate revela o nosso descompasso em comparação com os países desenvolvidos.

O debate sobre política pública no Brasil se caracteriza por propostas voluntariosas, com pouca análise da evidência empírica para avaliar os seus possíveis efeitos colaterais. Há muito, perdemos a autocontenção e a moderação dos controles cruzados. As regras que norteiam agências reguladoras e empresas estatais são tênues, por vezes tecnicamente mal definidas. Suas decisões são atropeladas por interesses oportunistas e paroquiais.

Contratos juridicamente perfeitos entre o setor público e empresas privadas são rompidos arbitrariamente pelo Executivo, com apoio do Judiciário. Dívidas reconhecidas do setor público, precatórios, têm seu pagamento postergado, rompendo o direito de credores para viabilizar gastos paroquiais. A conta, que será elevada, ficou, oportunisticamente, para quem vem depois.

Juízes e órgãos de controle frequentemente interferem na gestão pública por discordarem do mérito das medidas que respeitam a legislação. Por vezes, discordam do que está previsto em lei e impõem o que acham ser mais adequado.

A interpretação das normas tributárias é alterada oportunisticamente, de forma recorrente, para aumentar a arrecadação, disseminando a insegurança no setor privado e desestimulando o investimento.

O atual governo generalizou o descontrole, que se vem agravando há duas décadas. O ocupante do Palácio parece acreditar nas teses desvairadas e oportunistas de quem o visita. Os disparates sobre a urna eletrônica não deveriam surpreender.

O Legislativo, diante de um Planalto fraco, capturou uma imensidão de recursos públicos para utilizar a seu bel-prazer. As denúncias de malfeitos tornaram-se corriqueiras. As reformas constitucionais foram banalizadas. Os ritos de tramitação no Congresso são ignorados. Foi-se a compostura institucional.

O desvario acomete pessoas e países. A Venezuela se autodestrói. A Argentina segue para a degradação. Seguimos essa fila, que anda rapidamente.




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